Prontos para conhecer a escuridão de Francine Carmargo?
Hoje, na a #QuintaAutoralFabulônica.
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De Amores e Monstros
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” (Nietzsche).
Diante da cadeira à mesa do café, riso não havia. Era um homem com sua xícara. Enquanto o café esfriava ao passar apressado dos minutos, ele aceitava o que não conhecia. Aceitava mesmo sem confiar e fazia da copa um confessionário silencioso, onde segredos não se revelariam à hora serena do dia.
Teria ele sido mutilado nos quarenta anos em que vivera até então? Porque algo nauseava seus dias como uma falta do amor dormente, um membro decepado, um pedaço penosamente arrancado que ficou pelo caminho. Pouco de si lhe pertencia e o que ainda era seu, não reconhecia.
E a falta de identidade fazia com que vivesse sem garantias: sem proteção para se aprofundar em uma companhia; sem respaldo para tomar um café com pressa; com desinteresse de ter a xícara cheia ou vazia, meio cheia ou meio vazia, café meio quente ou meio morno. Não importavam as entrelinhas...
Até que a mudez lhe foi bruscamente proibida, sem licença prévia, inundando o cômodo com sua chegada.
– Shhhhhhhh – era o aviso de sua presença.
Virou o rosto e encarou a forasteira, visão mais insólita ainda não conhecia. Mas não se preocupou imediatamente em saber quem era ou o que era ou como teria entrado. Só temeu que o invadisse.
– Que quer aqui?
Ela sorria. Parte do seu corpo de mulher ondulava. Possuía olhos cintilantes e incisivos, cabelos longamente negros e eletrizados e os lábios entreabertos, deixando-se avistar a língua bifurcada, precipitada a se exibir, em sua linguagem reptiliana. O tronco nu esbanjava seios fartos e abrigados por escamas, a enrijecerem a pele disforme. No restante, era a cauda remanescente e rudimentar que permitia que a figura se deslocasse, rastejante em direção ao homem, sem intenção de parar.
– Vim para trazer-te luz.
Ela era claridade, geradora de todos os monstros.
Ele não se convenceu, porém, dos propósitos da ninfa/serpente e logo se esquivou:
– Pois perdeu seu tempo. A escuridão não me incomoda.
– Isso porque ainda não viste a coragem.
Pigarreou em resposta o homem desguarnecido e optou por não doar seu tempo à infratora que se apossava da sua casa e dos seus minutos de paz. Coragem! Como não teria coragem se era exatamente quem podia ser? Como não teria visto a coragem se fora obrigado a realizar o parto de si mesmo anos antes, quando a morte lhe tomara o caminho e nada mais restava se não nascer de novo, do novo, enfim? Como ousava dizer que a coragem não cruzou o seu caminho se ele já havia então acontecido?
– Mas não basta assumires a coragem, são teus medos que ainda fazem morada dentro de ti, shhhhhhh.
– E o que traria você de diferente para mim?
– Deixa-me ser teu demônio, deixa-me ser o teu tormento.
Com demônios já não vivia, já que quando decidiu afastá-los, colocou em seu lugar ele próprio, incompleto e sem verdades.
– Pois muito bem. Já que está aqui, faça-me um favor.
– Shhhhh...serei tua serva nesses instantes, mas sê breve e não penses que nada levarei em retorno. Dá-me algo em agradecimento?
O homem a fitou com um quê de desconfiança, mas temores não colecionava mais e podia se desencarcerar de qualquer bem, de qualquer prisão, de toda intimidade.
– Peça o que quiser, Équidna.
– Sabes meu nome?
– Sim, reconheço sua sombra, pois nas trevas já me embrenhei – e acrescentou com os olhos já fechados – por que viver de amor, esse que se julga o mais belo dos sentimentos, o mais imponente? Por que ele exerce o seu domínio e finge ser completo, se tanta dor é capaz de germinar? É somente essa resposta de que preciso.
O monstro maior contornou a figura do homem, agora calado e respeitoso, aguardando a conclusão. Por onde passou, deixou um rastro de seu corpo, uma fração reluzente de crostas em volta da cadeira, em preparo para a partida.
– Engana-te.
– Em que me engano? Responda e leve de mim o que desejar.
Shhhhhhhhh. Sorriu complacente a dama dos assombros.
– Isso que chamas de amor e é grandioso açoita porque é corpo e é alma, porque é verso e reverso, porque é outono e é primavera. Porque tem que se perder para ganhar, mas quando se colhe, já está se desfazendo. Porque também se sustenta do ódio, porque não morre à despedida, porque não importa quantos gritos e quantos ‘nãos’ tu sejas capaz de entoar, serão, ao final, os ‘sins’ e a mudez silentes que contarão a tua história.
Estava ele dolorido e sentindo o peso do dia, da vida que viria.
– Lutas tanto pelo amor, mas te esquece de que pelo amor também se luta contra. Assim é, assim precisa ser feito, senão serás pela metade.
Era hora de viver a vida inteira.
– Que levará de mim?
Inspirou profundamente a cobra mulher, como se sua recompensa fossem os possíveis aromas que impregnassem seu corpo distorcido.
– Faz um novo café para mim, pois nada que é morno me agrada.
E tomaram juntos, sem afoiteza o café fresco, tétrico na cor, contudo vívido em seu estado febril. E a partir dali, poderiam ambos partir, pois um e outro, com sua função, estariam prontos para entregar-se ao mundo, mesmo sem dele muito compreenderem.
Teria ele sido mutilado nos quarenta anos em que vivera até então? Porque algo nauseava seus dias como uma falta do amor dormente, um membro decepado, um pedaço penosamente arrancado que ficou pelo caminho. Pouco de si lhe pertencia e o que ainda era seu, não reconhecia.
E a falta de identidade fazia com que vivesse sem garantias: sem proteção para se aprofundar em uma companhia; sem respaldo para tomar um café com pressa; com desinteresse de ter a xícara cheia ou vazia, meio cheia ou meio vazia, café meio quente ou meio morno. Não importavam as entrelinhas...
Até que a mudez lhe foi bruscamente proibida, sem licença prévia, inundando o cômodo com sua chegada.
– Shhhhhhhh – era o aviso de sua presença.
Virou o rosto e encarou a forasteira, visão mais insólita ainda não conhecia. Mas não se preocupou imediatamente em saber quem era ou o que era ou como teria entrado. Só temeu que o invadisse.
– Que quer aqui?
Ela sorria. Parte do seu corpo de mulher ondulava. Possuía olhos cintilantes e incisivos, cabelos longamente negros e eletrizados e os lábios entreabertos, deixando-se avistar a língua bifurcada, precipitada a se exibir, em sua linguagem reptiliana. O tronco nu esbanjava seios fartos e abrigados por escamas, a enrijecerem a pele disforme. No restante, era a cauda remanescente e rudimentar que permitia que a figura se deslocasse, rastejante em direção ao homem, sem intenção de parar.
– Vim para trazer-te luz.
Ela era claridade, geradora de todos os monstros.
Ele não se convenceu, porém, dos propósitos da ninfa/serpente e logo se esquivou:
– Pois perdeu seu tempo. A escuridão não me incomoda.
– Isso porque ainda não viste a coragem.
Pigarreou em resposta o homem desguarnecido e optou por não doar seu tempo à infratora que se apossava da sua casa e dos seus minutos de paz. Coragem! Como não teria coragem se era exatamente quem podia ser? Como não teria visto a coragem se fora obrigado a realizar o parto de si mesmo anos antes, quando a morte lhe tomara o caminho e nada mais restava se não nascer de novo, do novo, enfim? Como ousava dizer que a coragem não cruzou o seu caminho se ele já havia então acontecido?
– Mas não basta assumires a coragem, são teus medos que ainda fazem morada dentro de ti, shhhhhhh.
– E o que traria você de diferente para mim?
– Deixa-me ser teu demônio, deixa-me ser o teu tormento.
Com demônios já não vivia, já que quando decidiu afastá-los, colocou em seu lugar ele próprio, incompleto e sem verdades.
– Pois muito bem. Já que está aqui, faça-me um favor.
– Shhhhh...serei tua serva nesses instantes, mas sê breve e não penses que nada levarei em retorno. Dá-me algo em agradecimento?
O homem a fitou com um quê de desconfiança, mas temores não colecionava mais e podia se desencarcerar de qualquer bem, de qualquer prisão, de toda intimidade.
– Peça o que quiser, Équidna.
– Sabes meu nome?
– Sim, reconheço sua sombra, pois nas trevas já me embrenhei – e acrescentou com os olhos já fechados – por que viver de amor, esse que se julga o mais belo dos sentimentos, o mais imponente? Por que ele exerce o seu domínio e finge ser completo, se tanta dor é capaz de germinar? É somente essa resposta de que preciso.
O monstro maior contornou a figura do homem, agora calado e respeitoso, aguardando a conclusão. Por onde passou, deixou um rastro de seu corpo, uma fração reluzente de crostas em volta da cadeira, em preparo para a partida.
– Engana-te.
– Em que me engano? Responda e leve de mim o que desejar.
Shhhhhhhhh. Sorriu complacente a dama dos assombros.
– Isso que chamas de amor e é grandioso açoita porque é corpo e é alma, porque é verso e reverso, porque é outono e é primavera. Porque tem que se perder para ganhar, mas quando se colhe, já está se desfazendo. Porque também se sustenta do ódio, porque não morre à despedida, porque não importa quantos gritos e quantos ‘nãos’ tu sejas capaz de entoar, serão, ao final, os ‘sins’ e a mudez silentes que contarão a tua história.
Estava ele dolorido e sentindo o peso do dia, da vida que viria.
– Lutas tanto pelo amor, mas te esquece de que pelo amor também se luta contra. Assim é, assim precisa ser feito, senão serás pela metade.
Era hora de viver a vida inteira.
– Que levará de mim?
Inspirou profundamente a cobra mulher, como se sua recompensa fossem os possíveis aromas que impregnassem seu corpo distorcido.
– Faz um novo café para mim, pois nada que é morno me agrada.
E tomaram juntos, sem afoiteza o café fresco, tétrico na cor, contudo vívido em seu estado febril. E a partir dali, poderiam ambos partir, pois um e outro, com sua função, estariam prontos para entregar-se ao mundo, mesmo sem dele muito compreenderem.
A Autora
Francine S. C. Camargo
*Clique na imagem abaixo e conheça mais sobre a Francine↓
Ju, minhas sombras também tem seus instantes de claridade. Obrigada sempre e sempre e sempre. Beijão.
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