Hoje a #QuintaAutoralFabulônica está rural.
Aproveitem este conto cheio de nostalgia, com gosto de infância e belas reflexões sobre o sentido da vida.
Rela e Requenguela
Então eles assomaram nos meados de um verão promissor, tarde ensolarada e bem-disposta. Em pouquíssimo tempo depois, estavam todos a percorrer o quintal, meio sem método, já que não havia cercanias. No percalço da mãe, sete, ao todo, perambulavam despretensiosos, sob a façanha de conhecer o mundo.
Lívia chegou no fim de semana seguinte, a fim de passar uns dias com a avó. Entre andar de bicicleta, devorar jujubas e doce de abóbora e colher goiaba do pé, deparou-se com aquela multidão de galinhas no terreno que, até então, julgava ser unicamente infantil.
E, mesmo assim, não poderia negar que ainda o fosse. Pois ali estavam aqueles seres pequeninos, com seus piados novos e marchas tortuosas, com seus corpinhos desajeitados e o desespero nos olhares, traço próprio de quem chega sem saber por onde começar. Ela também não sabia. Chegava naquela hora e vinha perdida, como quem se fingia em casa, mas ainda precisava adaptar-se pelo resto da vida ao ar insólito e à terra a poluir seus pés descalços.
Eram aqueles animaizinhos tão crianças quanto ela e tinham a sua mesma necessidade: o cuidado.
Mas a mãe, galinha toda soberba, pouca atenção dava a quem ficasse para trás. E dois deles esqueciam-se de avançar, vez ou outra. Lívia ficou ali a contemplar cada passo, enquanto a vida reverberava dentro da casa.
Apelidou os dois vagarosos de Rela e Requenguela, sendo este último o maior de todos e, no momento seguinte, já era esquecido novamente pela genitora. Ora, como seria isso possível, logo ela, mãe tão barulhenta que tanta ebulição causava no quintal? Pois Requenguela ficou deserto, enquanto Lívia correu para dentro da casa, buscando aventurar-se em outras brincadeiras, antes que engolisse dores outras que não fossem as suas, sem refresco para acompanhar.
Entretanto seus pensamentos ficaram empoleirados na paisagem habitada pelos seus novos companheiros e decidiu que voltaria para pegá-los. Na manhã seguinte, quando chegou ao quintal, estavam um, dois, três, quatro, cinco pintinhos a seguir a penosa, mas onde estariam os outros? Reconheceu, de imediato, quem eram os faltantes.
A avó explicou que havia encontrado logo cedo o maior de todos os franguinhos perecido em um canto do galinheiro, bastante distante da comitiva. Que fim mais desolador para Requenguela, pensou Lívia. Por onde andaria seu pequeno irmão? Iria procurá-lo e prometeu que, se ainda estivesse vivo, não o abandonaria.
Topou com Rela alguns minutos depois, chilreando um piado ressentido. Tratou de aquecê-lo, iluminá-lo e prescindi-lo de água e alimento, com todo o conforto e honrarias que ele merecia em sua curta estação, para que soubesse que, apesar de pequenino, era o seu favorito no universo.
Horas voaram e Lívia não quis saber de comer ou distrair-se, queria só ficar ali. O que ninguém sabia era que aquele pintinho era agora seu e que, desde que o divisara atordoado no quintal, ela também pertenceu àquele ser transitivo.
Quando a noite despontou no céu sem estrelas, o filho que nascera aos seus olhos jazia imóvel, sem presença e não mais impotente diante da vida que se extinguiu. Pensou em oferecer-lhe um enterro imperial, palavras de reconhecimento ou lágrimas de saudade. Mas nada disso surgiu em seus lábios e em sua face. Relutando em levantar e sair do estio em que se encontrava seu coração, Lívia meditou sobre a ineficácia de suas mãos e perguntou a si mesma quando seria hora de partir.
O verão passou, como passam os verões e a resposta não chegou tão cedo.
A Autora
Francine Camargo ↓
Belo conto, um certo ar de nostalgia. Palavras impregnadas de sensibilidade. Parabéns a autora, uma pérola para nossa quinta autoral.
ResponderExcluirMuito obrigada, Marcio. A Quinta Autoral é que é uma pérola em nossas vidas, não acha? Beijão.
ExcluirFico muito feliz com a interação de vocês. Fabulônica é como a nossa casa, então, sintam-se à vontade!
ExcluirMil Beijos